Defender o Serviço Nacional de Saúde

Direito de todos e não<br>negócio de alguns

Um milhão e 600 mil utentes não têm médico de família e parte considerável das receitas dos grupos privados é garantida pelo Estado

A construção do Serviço Nacional de Saúde (SNS) foi uma das mais significativas conquistas alcançadas com a Revolução de Abril, transformando o que antes era um privilégio de poucos – o acesso aos cuidados de saúde – num direito universal de toda a população, independentemente da sua situação económica e social. As melhorias alcançadas foram de tal ordem que a Organização Mundial de Saúde chegou a considerar o SNS português como o 12.º melhor do Mundo em níveis de cobertura e qualidade.

Os números, aliás, aí estão a prová-lo: em 1960, a taxa de mortalidade infantil em Portugal era de 77,5 por mil nascimentos, sendo de 3,4 em 2012; a esperança de vida à nascença aumentou mais de 12 anos entre 1970 e 2011 (de 67,1 para 79,8); os novos casos de tuberculose, que eram 194,5 por 100 mil habitantes, em 1960, estavam em 2011 fixados nos 22,6. Se é certo que nestes resultados entrarão outros factores, como a melhoria das condições de vida (também ela uma conquista de Abril), não o é menos que a existência de uma rede de cuidados de saúde abrangendo o território nacional, de acesso universal e dotada de profissionais qualificados assume um papel determinante.

Tal como sucedeu com a generalidade das conquistas revolucionárias de Abril, também a criação do Serviço Nacional de Saúde não resultou da mera iniciativa dos deputados na Assembleia da República. Aliás, muito antes de 15 de Setembro de 1979 (data da publicação da lei que criou o SNS), já muito tinha sido feito no sentido da generalização do acesso à Saúde por toda a população. A descentralização e proximidade dos serviços aos utentes era já então uma realidade em muitos locais do País, fruto da iniciativa revolucionária dos profissionais de saúde – a mesma que foi fundamental para a consagração, na Constituição da República, do direito universal e gratuito à Saúde e da necessidade de um Serviço Nacional de Saúde que o concretizasse.

A troika dos interesses

A ofensiva contra o Serviço Nacional de Saúde, que se encontra hoje numa fase particularmente adiantada, é tão velha quanto o próprio SNS: depois de terem votado contra a sua criação, PSD e CDS (unidos no governo da AD) chegaram mesmo a suspender temporariamente a lei que constituía o SNS, tinha ela apenas três meses; pela mesma altura, os grandes interesses da medicina convocaram uma «greve» exigindo a sua revogação. Esta ligação promíscua entre os partidos da política de direita e os grupos económicos com interesses na Saúde – sendo os mais significativos, hoje, o BES/Saúde, José de Mello Saúde, HPP/Lusíadas, e Trofa Saúde – é uma marca constante destas três décadas e meia.

Mas o grande ataque contra o Serviço Nacional de Saúde iniciar-se-ia em 1990 (no governo PSD/Cavaco Silva), com a aprovação da Lei de Bases da Saúde, que entre outras questões abriu a porta do sector à intervenção dos grupos privados. Esta lei só foi possível porque, no processo de revisão constitucional realizado no ano anterior, o PS alinhou com os partidos da direita na inclusão do termo «tendencialmente» junto ao carácter gratuito do acesso aos cuidados de saúde. A convergência, de facto, naquilo que é essencial, entre o PS, o PSD e o CDS fez-se sentir também na ofensiva contra o SNS.

Porém, apesar das mutilações sofridas, o actual texto da Constituição em nada admite a política há muito seguida de destruição do Serviço Nacional de Saúde.

Contra-revolução faz mal à Saúde

Se Abril significou um avanço histórico no que respeita ao nível de prestação de cuidados de saúde, a contra-revolução e a política de direita apontam precisamente no sentido oposto. Fruto de anos de ataque aos direitos dos profissionais de Saúde, de encerramento de serviços, de aumento dos custos assumidos pelos utentes e de cortes orçamentais, muito do que se alcançou está seriamente ameaçado.

Hoje, um milhão e 600 mil portugueses não tem médico de família e faltam milhares de profissionais a todos os níveis; dezenas de serviços de proximidade encerraram e vários hospitais perderam valências, obrigando os utentes a deslocações cada vez maiores para acederem aos cuidados de que necessitam; os tempos de espera para cirurgia e consultas atingem níveis inaceitáveis; o financiamento do Estado não cessa de diminuir, ao mesmo tempo que os utentes assumem uma fatia cada vez maior das suas despesas com saúde: as famílias gastam hoje 5,2 por cento do seu orçamento familiar com a saúde (a média dos países da OCDE está nos 3,2 por cento), suportando directamente 30 por cento dessas despesas.

Se a realidade é cada vez mais dramática para a imensa maioria do povo português, para os grupos económicos do sector a situação é francamente animadora: os quatro gigantes controlam já 83 por cento do chamado «mercado da Saúde», que movimenta anualmente qualquer coisa como 1500 milhões de euros, e detêm mais de metade das unidades de Saúde do País, incluindo 23 hospitais. Como se não bastasse, parte substancial das suas receitas são garantidas pelo Estado, através do regime convencional, das PPP ou de subsistemas como a ADSE. Qualquer política pública de defesa do SNS terá que romper com o escandaloso favorecimento dos grupos privados e afirmar a natureza pública, universal, geral e gratuita dos serviços de Saúde.


Há alternativa
Reforçar o SNS

As propostas do PCP para o sector da Saúde convergem num objectivo central: o reforço do Serviço Nacional de Saúde e do seu carácter universal, geral e gratuito, única forma de assegurar o real acesso de todos os utentes a cuidados de saúde de qualidade. O PCP defende, nomeadamente:

  • gestão pública eficiente, transparente, participada e articulada entre cuidados primários e cuidados hospitalares;

  • eliminação das taxas moderadoras;

  • dotação do SNS dos meios humanos, financeiros, técnicos e logísticos necessários ao seu eficaz funcionamento;

  • fim do modelo de gestão «Hospital Empresa», EPE;

  • fim de todas as formas de emprego precário no sector e a aplicação do vínculo público de nomeação e das carreiras profissionais;

  • reforço do investimento nos cuidados de saúde primários, com o objectivo de dotar todos os utentes do seu médico e enfermeiro de família;

  • criação do Laboratório Nacional do Medicamento;

  • garantia do transporte gratuito dos doentes não urgentes;

  • revogação da portaria 82/2014 e a realização de uma verdadeira reorganização hospitalar que vá ao encontro das necessidades dos utentes.

 



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